O microcrédito no mundo

Setembro às 6:00 pm | Publicado em ajuda, banca, desigualdade, finanças, opressão, pobreza | Deixe um comentário
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Christine Ockrent (org.)
O livro negro da condição das mulheres
Lisboa, TemaseDebates, 2007
Excerto adaptado

O microcrédito no mundo

Um instrumento ao serviço das mulheres

Ainda que não seja uma solução milagrosa, o microcrédito demonstra que, à escala global, permite às mulheres adquirirem responsabilidades e autonomia. Desta forma, assegura tanto a sobrevivência da família, como um papel socialmente reconhecido para a própria mulher. Exemplos em quatro continentes.

O microcrédito é um instrumento financeiro ao serviço de um objectivo social. Corresponde à primeira equação que se aprende em economia: trabalho + capital = criação de riqueza. Mas é muito mais que um simples instrumento de investimento. Permite transformar os sonhos em realidade: aqueles e aquelas que a ele recorrem ficam dotados de um poder que antes não possuíam. Desta forma, o microcrédito revela-se particularmente precioso para conferir mais responsabilidade e autonomia às mulheres, dando azo àquilo que os ingleses designam por empowerment (O termo empowerment levanta problemas de tradução. É geralmente traduzido por «auto-afirmação» ou «acesso [das mulheres] à decisão».).
Ainda que se trate de um conceito universal, assume formas diferentes consoante os contextos locais.

Na Ásia, o microcrédito permite às mulheres encontrarem um lugar na sociedade

Em muitos países da Ásia, e mais particularmente nos países muçulmano; as primeiras vítimas da extrema pobreza são as mulheres. No Bangladesh, a carência de terras limita a sua capacidade produtiva. São essencialmente consideradas como um fardo, bocas para alimentar, e os homens livram-se delas à primeira oportunidade, de forma tanto mais fácil, quando lhes é possível repudiar uma esposa para se casarem com outra que traga consigo um dote. Muitas esposas são assim abandonadas, com filhos a seu cargo e sem qualquer fonte de rendimento. A sua situação muda completamente se, à falta de acesso à terra, tiverem acesso ao capital. Um empréstimo de algumas dezenas de euros permite-lhes dar início a pequenas actividades de comércio ou de artesanato, às quais podem associar o seu marido. Graças a esse rendimento, ganham respeito social e por si mesmas. É assim que Minati faz grandes cestos de bambu. Utiliza o seu empréstimo para comprar a matéria-prima. Aícha tece saris, Jahera fabrica bolos e Kalpana tem uma criação de galinhas. Aplicam escrupulosamente o seu empréstimo, o que lhes permite continuarem a investir. Ao fim de alguns anos, podem obter um empréstimo de habitação para construírem ou melhorarem a sua residência ou investirem na escolaridade dos seus filhos. Podem colocar algum dinheiro de lado que, gerido pelo Grameen Bank, lhes permitirá vir a possuir uma reforma. O microcrédito não pode suprimir o problema da carência de terras, das inundações, das epidemias, da falta de infra-estruturas ou da corrupção. Contudo, nas mãos das mulheres, pode transformar-se num instrumento para a sua autopromoção e para proporcionar uma vida melhor às suas famílias.

Em África, o microcrédito permite garantir a sobrevivência da família em zonas rurais, ao oferecer às mulheres uma forma de desenvolverem actividades geradoras de rendimentos

Em África, as mulheres não padecem da mesma inferioridade que na Ásia. São mais respeitadas, na medida em que, na maioria dos casos, possuem pequenas actividades autónomas: possuem uma propriedade sua, cabras ou vacas e, eventualmente, algum dinheiro. No entanto, a sua vida não é fácil. No Sahel, a estação seca faz com que os homens partam à procura de uma fonte de rendimento nos países vizinhos e, por vezes, na Europa. Podem ou não regressar. Enviam dinheiro para ajudar a sua família que permaneceu na aldeia, mas, muitas vezes, o dinheiro não chega e as mulheres vêem-se obrigadas a arranjar forma de garantir a sobrevivência das crianças e dos idosos da comunidade. O microcrédito cria então uma oportunidade para o desenvolvimento, também aqui, das pequenas actividades tradicionais. Mariama faz fritos que vende no mercado, Binta produz cerveja de milho, Aíssatou compra sacas de arroz num grossista, que depois revende no mercado durante o período de escassez.

Na América Latina, o microcrédito financia actividades informais nos bairros-de-lata

Na América Latina, o sector informal abrange uma grande parte da actividade económica e ocupa a maioria dos habitantes dos bairros-de-lata, que continuam a crescer, à margem de qualquer base legal, em redor dos grandes aglomerados populacionais. Também aqui, o microcrédito fornece às mulheres uma forma de aumentarem os seus magros rendimentos. Como em outras regiões, não se trata de grandes investimentos: uma máquina de costura fornece a Isabel os meios de se lançar na confecção, um pequeno empréstimo permitiu a Alba começar a comercializar legumes no mercado, um equipamento muito simples permite a Lucrécia abrir um pequeno salão de cabeleireiro. Em alguns países, como na Bolívia, o microcrédito passou a ser uma actividade bancária; em outros, como no Brasil, ainda se encontra pouco desenvolvido, mas beneficia do apoio do Governo. No Chile, bancos locais e estrangeiros passaram a criar filiais dedicadas à microfinança.

Na Europa Central, o microcrédito permite privatizar a economia a partir da sua base

A impotência do sector público e a ausência de um sistema de protecção social eficaz condenaram à miséria milhões de homens e mulheres do antigo mundo comunista. Tratava-se tanto de operários como de camponeses ou empregados. De um dia para o outro, as mulheres passaram de uma época em que tudo se encontrava programado e assegurado, ainda que o nível de vida fosse muito baixo, para um mundo no qual têm de encontrar novas formas de ganhar a sua vida e de sustentar as suas famílias.

O desenvolvimento do microcrédito foi muito rápido, graças ao financiamento e ao apoio técnico trazidos pelas instituições financeiras internacionais, permitindo a criação de diversas instituições de microfinança, capazes de responder às necessidades das pessoas. A procura por parte das mulheres foi particularmente grande. Muitas vezes, foram elas as primeiras a reagir às dificuldades. Não tinham opção: era necessário alimentar a família. Quer se tratasse de antigos membros das cooperativas ou de operárias das grandes empresas públicas, elas imaginaram novas actividades, correspondentes às necessidades do mercados e às suas próprias capacidades. Da venda ambulante aos serviços de limpeza, dos pequenos restaurantes familiares à hotelaria ou à pequena pecuária, as mulheres tomaram em mãos a sua vida profissional e tornaram-se trabalhadoras independentes. Arrastaram consigo os homens, mais desorientados que as suas cônjuges com este universo novo e desconhecido. Hoje, nos países pós-comunistas, o número de clientes dos dois sexos do microcrédito situa-se entre os quatro e os cinco milhões.

Em Franca, o microcrédito ajuda as mulheres a sair da exclusão, ao criarem o seu próprio emprego

O microcrédito, introduzido em França pela ADIE (Association pour le Droit à l’Iniciative Économique) em 1989 dirige-se aos empregados e aos beneficiário do RMI (Revenu Minimum d’Insertion, equivalente ao Rendimento Mínimo Garantido) sem acesso directo aos bancos. Das 30000 microempresas até hoje financiadas, mais de um terço foram criadas por mulheres. Estas são mais lentas a «lançar-se» que os homens, mas, assim que tomam a sua decisão, não largam o seu projecto e recuperam melhor os seus investimentos. Chantal, beneficiária do RMI, após uma vida de pequenos biscates, decide, aos 50 anos, recuperar uma pequena mercearia rural em Mayenne. A comunidade oferece-lhe ajuda. Ela recupera a coragem e a confiança. Para completar a sua actividade, está a criar um pequeno restaurante.

Cármen é posta fora de casa pelo seu marido, que se deseja divorciar. Dorme na rua mas recusa-se a baixar os braços. Com um balde e equipamento apropriado, propõe às lojas lavar-lhes a montra. Obtém um empréstimo junto da ADIE para comprar um velho veículo utilitário e o equipamento mínimo. Passados dois anos, ei-la à frente de uma empresa de limpeza que emprega 30 pessoas. «Recruto-as entre aqueles e aquelas que estão em dificuldade», informa. «Conheço bem esse tipo de situação.» Joelle, que acaba de terminar os seus estudos linguísticos, não encontra trabalho. Mais do que permanecer como beneficiária do RMI, lança-se por sua conta como tradutora. O empréstimo permite-lhe comprar o seu equipamento informático. Ganha bem a sua vida. Também Rachida está sem emprego: sente tanto mais dificuldades em encontrá-lo, na medida em que o seu apelido e endereço atraem as renitências dos potenciais empregadores. Ao fim da sua 200ª carta sem resposta, cria uma auto-escola num bairro difícil. Para além de ter obtido um empréstimo, o acompanhamento da associação facilita-lhe os procedimentos administrativos e ajuda-a a levar por diante a gestão da sua microempresa.

Assim, por toda a parte no mundo, o microcrédito ajuda as mulheres a sair de situações difíceis, a tomarem conta de si mesmas e das suas famílias, a se tornarem autónomas e deixarem de necessitar da ajuda social. Não é uma solução milagrosa para todos os males, mas representa um pequeno apoio financeiro, suficiente para criar riqueza e valorizar o trabalho das mulheres. Para além da sua função financeira, devolve a esperança e o horizonte àquelas que já os tinham perdido. A palavra «crédito» vem de credere, acreditar, e é exactamente a confiança dos outros que permite às mulheres acreditarem em si mesmas.
Assim, «este ágil substituto do dinheiro», usando as palavras de Fernand Braudel relativamente ao «crédito», pode transformar-se simultaneamente num instrumento de crescimento e de coesão social, de igualdade de oportunidades e de promoção das mulheres.

Maria Nowak

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