Viagens contra a indiferença – Irão

Setembro às 9:58 am | Publicado em ajuda, desespero, desigualdade, injustiça, pobreza, sociedade | Deixe um comentário

Fernando Nobre
Viagens contra a indiferença
Lisboa, Temas e Debates, 2007

Excertos

As minhas viagens… contra a indiferença e a intolerância

Porque decidi publicar agora, num único livro, algumas histórias e uns poucos diários de viagem, 16 em mais de 200 viagens, que escrevi nos últimos vinte anos?
Porque entendi que talvez esses «gritos de rato», como em geral os apelido, contidos nesses diários e histórias (costumo dizer que prefiro ser a cabeça de um rato ao rabo de um elefante!) e vindos do mais profundo da minha alma (embora muitos se tenham perdido na já longa caminhada da minha saga humanitária), pudessem contribuir para interpelar ou alertar algumas consciências numa altura em que estamos todos apreensivos com o amanhã das nossas liberdades e das nossas democracias num mundo tão enfermo de indiferença, intolerância e fanatismo, gerador de tanto terror, humilhação e exclusão.
Por isso decidi, por ocasião dos 20 anos da AMI e dos meus 25 anos de acção humanitária, fazer um esforço de memória, e de compilação, a fim de tentar reunir alguns desses diários e histórias que encerram parcialmente as minhas memórias, assim como gritos, alertas, protestos, apelos e constatações que escrevi ou relatei, sempre assumidos como um direito e um dever de um cidadão português e do mundo que se pretende activo! Fi-lo sempre com um único objectivo: tentar ser humanamente correcto e dar, humilde mas convictamente, um contributo sincero, por vezes incómodo e politicamente incorrecto, confesso, mas sempre sustentado tentado na minha vivência e observação, no sentido da melhoria da nossa Humanidade. Agi sempre, por acções e palavras, com o intuito de combater com determinação, tenacidade, coerência e até veemência, o que considero as duas piores doenças da Humanidade: a Indiferença e a Intolerância.

Irão — 1981

26 de Fevereiro

6:30 — Parto triste e preocupado. Triste porque parto para uma missão de guerra: efectivamente vou para o Irão em guerra com o Iraque.

28 de Fevereiro

23:00 — Esta tarde às 15:00 a nossa delegação foi recebida em audiência oficial pelo Ayatollah Khomeini, líder supremo da revolução islâmica iraniana. Tal honra foi sem dúvida devida ao facto de sermos a primeira delegação ocidental a chegar ao Irão após a recente libertação dos reféns norte-americanos da Embaixada norte-americana em Teerão. De relembrar que esses reféns ficaram presos na Embaixada norte-americana em Teerão, e em outros locais, mais de um ano e que foram apenas libertados no próprio dia do fim de mandato do Presidente Cárter e da tomada de posse do Presidente Reagan. Tal facto deu-se a 20 de Janeiro de 1981, a saber pouco mais de um mês antes da nossa chegada a Teerão. Tudo isso explica o acolhimento extremamente caloroso e oficial a que tivemos direito no aeroporto, assim como as atitudes amigáveis e respeitosas com que temos sido brindados desde que chegámos a Teerão. Durante a audiência o Ayatollah Khomeini mostrou-se extremamente seráfico, silencioso, trocando poucas palavras connosco, estando mais à escuta do que falando ele próprio. Inteira-se do porquê da nossa estadia no Irão e o que planeamos fazer durante essa estadia. Foi-lhe explicado que somos uma delegação de uma instituição humanitária que, perante as dificuldades enfrentadas no Sul pelo povo iraniano em guerra com o Iraque, estávamos lá apenas como equipa médica para prestar o apoio possível. O seu olhar, sob espessas sobrancelhas, é intenso e tem o brilho e o fulgor daqueles que se crêem investidos de uma missão sobrenatural. É de certeza um místico, mas também um condutor de homens implacável. Sente-se nos seus seguidores, presentes na sala, uma deferência absoluta. A sala está toda coberta de tapetes e ele, como nós todos, está sentado sobre almofadas. Estamos perante um Califa com poder absoluto. É o Imã.
A missão dos Médecins Sans Frontières de França é chefiada pelo administrador Francis Charon e é composta por outro administrador; por mim como cirurgião, pelo médico anestesista francês de Nantes, assim como por uma enfermeira e um protesista: estes dois últimos ficarão em Teerão enquanto eu e o médico anestesista partiremos para a linha da frente da guerra. Reflectindo sobre essa entrevista com o Ayatollah Khomeini, apercebo-me de que tive à minha frente um homem implacável que irá até ao fim do seu projecto fundamentalista e que não hesitará em empregar todos os meios para atingir os seus objectivos. É um homem dominado pela sua visão e por uma fé exclusiva que infelizmente ao longo da história tem produzido responsáveis de grandes chacinas e de grande sofrimento. Durante essa curta conversa que não terá durado mais de vinte minutos tenho muitas dúvidas de que o Irão pós-Xá seja menos sofredor do que foi durante a ditadura do Xá, mesmo com a sua polícia política, a então temível Savak. Nesse mesmo dia à tarde visito o Bazar de Teerão que é fabuloso de gente, de mercadorias (das frutas aos tapetes), de cores, cheiros e sons. A ambiência em Teerão é de revolução com todas as mulheres trajadas a rigor, com o seu chador negro, com fotografias do Ayatollah Khomeini por todo o lado, não só nos edifícios oficiais mas também nos hotéis e em edifícios particulares. Logo à entrada do nosso hotel está uma enorme fotografia do líder supremo da revolução islâmica. Ao fim da tarde, consegui falar com a minha mulher e o meu filho em Bruxelas, o que me deixou um pouco mais sereno. O dia acabou com um jantar no hotel com várias delegações de países islâmicos de visita a Teerão.

14 de Março

Só hoje escrevo porque estou cansado. Durmo num quarto cheio de mosquitos e sem casa de banho para me poder lavar. Mudámo-nos dia 2 para o hospital civil de Maha-Shar. Aí travámos conhecimento com um médico fantástico, o Dr. Rezvani, médico ortopedista iraniano da cidade santa de Mashad (cidade onde está enterrada Fatma, a filha predilecta do profeta Maomé, mulher de Ali e mãe de Hussein, estes dois últimos enterrados em Najaf e Kerbala no Iraque) e que está no Golfo Pérsico devido a uma sentença de desterro por 4 anos, após ter sido chicoteado em público. O Dr. Rezvani é o exemplo típico de vítima do arbitrário total. Viu-se afastado da sua família por um período de 4 anos só porque foi vítima de uma denúncia de um criado por ter em casa uma garrafa de whisky!! Tal constitui uma infracção gravíssima perante as leis islâmicas da nova ditadura no Irão. Com ele fizemos a visita ao hospital que tem cerca de 90 camas cirúrgicas. Existia muito trabalho e decidimos ficar. Durante a nossa estadia nesse hospital, o médico francês anestesista e eu próprio temos tido a possibilidade de intervir muitas vezes e a possibilidade de falarmos com os iranianos e de nos interrogarmos sobre a estupidez da guerra em curso. Todos sabem que o Iraque está a ser apoiado, equipado e aconselhado por todas as potências ocidentais, nomeadamente a França, a Alemanha, a Bélgica, os EUA, porque para o Ocidente é fundamental que a revolução islâmica (xiita) em curso no Irão não se alastre a todo o Médio Oriente e não só! Pese embora o regime ditatorial do Sr. Saddam Hussein ter tendências expansionistas (tem a intenção de ocupar toda a zona petrolífera do Irão e a zona vital do Chat-el-Arab, delta dos rios Tigre e Eufrates da Babilónia, que desagua no golfo Pérsico), beneficia do apoio militar maciço do Ocidente! Daí que perante duas ditaduras, qual delas a mais hedionda e facínora, o Ocidente tenha optado por apoiar a ditadura do Sr. Saddam Hussein… Passo os meus dias no bloco operatório a retirar estilhaços de bombas e a operar queimaduras, fracturas… enfim o habitual numa missão de guerra onde a cirurgia tem de ser, infelizmente, uma cirurgia expedita e pouco conservadora, na medida em que se trata de salvar o máximo de vidas e de operar o máximo de doentes. Nessa situação de cirurgia expedita, as amputações são o gesto salvador para muitas vidas. Quando não estou a operar, visito as enfermarias. De realçar: é proibido ao médico homem tocar a pele de uma doente. Para examinar uma senhora temos que o fazer permanecendo ela vestida (de referir que as camadas de roupa são algumas); e se, como diz o livrinho verde do Ayatollah Khomeini, o médico tiver de examinar a senhora do ponto de vista ginecológico, só o poderá fazer olhando a região proibida (!) por intermédio de um espelho ou de uma superfície de água! Muito fácil! É preciso ter pontaria! De salientar também o sofrimento das crianças e sobretudo a morte destas que me parece completamente intolerável e inaceitável e particularmente dolorosa. Refiro, só como exemplo, o caso de uma menina de 8 anos vítima de um bombardeamento que ficou queimada em cerca de 95 %. Quando no-la trouxeram de imediato soube que só poderia haver um desfecho: a morte rápida. Já tinha a experiência da Unidade de Queimados do Hospital Universitário de Bruxelas… Perante esse corpo infantil, inchando rapidamente, que deitámos por cima de um lençol limpinho, o único gesto que pude fazer foi pôr a pomada de zinco, que trouxera de Paris para mim próprio caso tivesse alguma queimadura localizada, espalhando-a pela cara da menina embora sabendo bem da inutilidade do meu gesto. Pareceu-me impossível ficar impávido a olhar para aquela criança morrer, o que veio a acontecer poucas horas depois. O meu gesto foi um gesto gratuito mas para mim teve muito significado. Importa referir também que no hospital de Maha-Shar todas as salas, incluindo as salas de internamento, os blocos operatórios e os corredores estão profusamente decorados com retratos do Ayatollah Khomeini e de muitos outros ayatollahs e mullahs que me fazem pensar que estamos num local de culto, e não num hospital. Tal situação choca-me porque penso que um hospital não é o local propício para tal demonstração de culto de personalidades. Todos os dias, perante o número de feridos que são transferidos de Abadan e de outras linhas da frente, interrogamo-nos cada vez mais sobre o sentido desta chacina de jovens que se vai perpetuando numa guerra que não faz sentido entre dois povos que se reclamam de Alá. Só por razões de poder e de geoestratégia é que se entende tal chacina. Já nem falo dos milhares de amputados que por aqui andam! Penso nos milhares de jovens que explodem nos campos de minas entre os dois países e que são verdadeiramente carne para minas ou carne para canhão! Interrogo-me sobre o bom senso dos governantes e o que os motiva para tamanha insensibilidade. A juventude do povo iraniano, mas presumo que aconteça o mesmo do lado iraquiano, está a ser dizimada por uma guerra com contornos ideológicos e religiosos e com objectivos económicos evidentes que são o controlo das jazidas de petróleo do Golfo Pérsico. Não deixo também de me interrogar porque o Ocidente apoia o ditador Saddam Hussein, cujo curriculum de atrocidades já é extenso. Durante esta minha estadia no golfo Pérsico já deu para perceber o medo latente que as pessoas têm aqui no Irão: medo da denúncia, medo da repressão, medo da prisão, medo do exílio e medo da morte! As pessoas com formação têm a perfeita noção de que vivem num regime ditatorial, de que estão permanentemente vigiadas e que o mínimo desvio pode custar-lhes a liberdade ou a própria vida. Aqui os Direitos do Homem e a liberdade individual são um mito. A maioria dos letrados está, pois, em liberdade condicional.

15 de Março

Perante a necessidade de precavermos o nosso regresso de Teerão para Paris, e já que não nos é garantido transporte aéreo militar, o único meio aéreo que existe, do golfo Pérsico para Teerão!, deslocámo-nos à vila mais próxima de Maha-Shar, Sarbandard, a fim de podermos comprar bilhetes para um autocarro que nos conduzirá até Teerão. Vou deixar o hospital de Maha-Shar sem saudades, a não ser do Dr. Rezvani, o ortopedista exilado, e do Dr. Bodaghi, médico pediatra particularmente simpático como o seu colega. De todos os outros devo dizer que parto sem saudades, na medida em que se percebe que, ou por razões religiosas ou por medo, é quase impossível dialogar com eles. Eles desconfiam de nós, como ocidentais, infiéis e impuros que somos. No livrinho verde de Khomeini estamos entre o cão e o porco! Estou também cansado e farto de tanto sofrimento e morte.

18 de Março

Partida de Maha-Shar em direcção a Sarbandard onde às 8:30 apanhámos um autocarro em direcção a Teerão. A viagem demora perto de vinte e quatro horas. Deixei o golfo Pérsico, região de grandes feitos históricos portugueses. Aqui toda a gente — enfim, a letrada! — sabe quem foi Afonso de Albuquerque. Quando chegarmos a Teerão tenho a intenção de visitar uma fábrica de próteses para amputados. No autocarro «tradicional» com destino a Teerão, sentámo-nos, o anestesista e eu, nos dois primeiros lugares à frente do lado direito. À nossa esquerda sentou-se um mullah. Tive o pressentimento de que os aborrecimentos não tardariam. Efectivamente, um pouco mais adiante, durante a viagem fiz uma fotografia de uma cordilheira com neve, o Zagros, mal sabendo que cerca de três a quatro quilómetros mais à frente existia um campo militar à direita na estrada. A partir desse momento foi o inferno. O mullah começou a acusar-nos de sermos espiões e que a fotografia tirada por mim pretendia indicar a existência do campo militar e que, como espiões que éramos, seríamos em Teerão entregues aos pasdarans, a milícia política, sem rei nem roque, do novo regime. De referir que os pasdarans, «estudantes islâmicos», são os guardiões do templo, celerados e crápulas com total cobertura do regime. Por mais que insistíssemos que tínhamos estado a trabalhar como médicos humanitários em Maha-Shar no hospital Mossadeh, nome de um anterior primeiro-ministro que quis nacionalizar o petróleo iraniano, deposto pelos americanos, os ingleses e as petrolíferas no início da década de 50, não conseguimos demover o maldito mullah da ideia de que éramos espiões! Seríamos tratados como tal! Perante a sua insistência, tive de lhe entregar o rolo da máquina fotográfica, ficando por isso sem recordações da minha missão no golfo Pérsico; e ele só não nos entregou na polícia de Ahvaz porque lhe disse que tínhamos vindo para o Irão a pedido de Ayatollah Khomeini com o qual tínhamos tido uma entrevista em Teerão. Penso que a partir daí começou a reflectir sobre o seu próprio destino… Quando passei por Ahvaz e Dezful, pese embora o fundamentalista mullah, pensei em Alexandre, o Grande, que aí foi generoso e magnânimo com a viúva de Dario, o imperador persa derrotado (e assassinado pelos seus próprios generais vira-casacas e oportunistas que Alexandre, e bem!, mandará executar por felonia…) e se casou em Dezful com uma das filhas do defunto imperador. Essas duas vilas foram bastante atingidas pela actual guerra.
Durante a viagem, passei pela cidade santa de Qom e fiquei com uma imagem gravada para sempre na minha retina: era noite e, iluminada pela lua e as estrelas, recortava-se no céu a imagem de uma bela mesquita com o seu esbelto minarete! Que linda imagem para as mil e uma noites… numa Bagdad de outros tempos… Até Teerão, durante toda a viagem, nunca ninguém nos dirigiu a palavra: quando o autocarro parava em localidades para podermos beber um chá, tinha a nítida impressão de que, a partir do momento do ataque cerrado do mullah, tínhamos adquirido a peste! Felizmente, à chegada a Teerão o dito mullah decidiu não criar mais entraves, o que nos permitiu recuperar as nossas malas do tejadilho do autocarro e irmos embora…

30 de Março

Data da partida de Teerão para Paris. Devo dizer que senti uma sensação de liberdade muito profunda quando o avião descolou porque tinha a nítida impressão de que deixava um país com um regime repressivo, violento, e uma visão fundamentalista não só da religião mas também do modo de vida. Para mim correspondia a sair de uma prisão. Efectivamente, o Irão que acabava de conhecer mais não era do que uma enorme prisão para muitos iranianos e um ponto de interrogação para muitos outros. Estou convicto também de que a guerra Irão-Iraque é inútil, violentíssima e que provocará até ao fim milhares e milhares de mortos devido à vontade assassina e hegemónica de dois déspotas, o Sr. Saddam Hussein no Iraque e o Ayatollah Khomeini no Irão. Possa o futuro contradizer-me.

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